sábado, 10 de março de 2012

Livro - A ausência que seremos


 

Sou grato ao Padre Carlos Sanchez, da Igreja de São Pio, do Sudoeste, aqui de Brasília, pela gentileza com que me brindou recentemente, propiciando-me acesso ao que ele chamou “uma pequena amostra da literatura colombiana contemporânea”:  trata-se do texto de memórias autobiográficas intitulado “A ausência que seremos”, de Hector Abad, Cia. das Letras, 2006/2011, 317 páginas. È um texto impressionante, forte e duro, corajoso, revelador de toda a imensidão de um amor de filho em relação ao pai, médico sanitarista; reconstrói, ao mesmo tempo, a luta insana contra as injustiças sociais, num clima de intensa turbulência e de violência na Colômbia. O depoimento é vigoroso, denso e rico, evoluindo de uma imensa ternura familiar para acontecimentos dramáticos de fortes conflitos sociais e políticos, cruéis e devastadores.  O autor vai desde o início de sua infância e descreve com força a belíssima convivência com o pai, no ambiente de uma família curiosa: são dez mulheres (Tatá, de cem anos, quase cega, que fora babá da avó;  duas empregadas, Emma e Teresa;  as cinco irmãs, Maryluz, Clara, Eva, Marta, Sol;  a mãe Cecília e a freira Josefa, encarregada de cuidar do Abad e da Sol); um menino, Hector Abad, e o pai, Hector Abad Gómez.  Desde cedo, o menino devotava ao pai um amor acima de todas as coisas:”amava-o mais que a Deus.  Um dia teve que escolher entre Deus e o pai”.  A freira Josefa sentenciou que o pai não ia à missa e, porisso, iria para o inferno. A criança logo retrucou: “não quero mais ir para o céu. Não gosto do céu sem meu pai. Prefro ir com ele para o inferno.”  O pai, médico, professor e lider na defesa dos direitos humanos, era na verdade um cidadão especial,  amoroso, amigo e afetuoso:  sempre que chegava em casa, “me abraçava, me beijava, dizia um monte de frases carinhosas e, para terminar, soltava uma sonora gargalhada.”  Esse tratamento do pai destoava do padrão da sociedade de Antioquia (era tido como “cumprimento de mariquinha e de menino mimado”), pois a tradição local ensinava que o cumprimento entre os homens, pai e filho, deveria ser “distante, seco e sem demonstrações de afeto”.  Sobre o pai, era dito ainda que: “Conforme o dia, meu pai se declarava agnóstico, ou crente nos ensinamentos de Jesus, ou ateu de terra firme (pois nos aviões se convertia momentaneamente, fazendo o sinal da cruz na hora da decolagem)”.  Em outras palavras, o pai se declarava”cristão em religião,marxista em economia e liberal em política”.  A narrativa ganha força na reconstrução da trajetória do sanitarista Hector Abad Gómez, devotado na defesa dos direitos humanos, a despeito de todos os riscos no ambiente de guerras da Colômbia.  O título do livro decorre dos versos iniciais do soneto de autoria de Jorge Luis Borges (“Já somos a ausência    que seremos, o pó elementar que nos ignora ...”) e que o autor leu pela primeira vez ao encontrá-lo num papel manchado de sangue ainda fresco, no bolso do pai vitimado numa calçada, instantes depois de ser fulminado por matadores de aluguel.  O autor “mergulhou fundo na alma do seu povo e compôs um livro sensível sem sentimentalismo, cru sem truculência, carregado de dor e surpreendente humor ... “  A perda dramática do pai, em 25 de agosto de 1987,  foi guardada com zelo e maturidade durante cerca de vinte anos, período em que se manteve em maturação e decantação, de modo que só em 2006 foi objeto de publicação em livro.  Valeu a pena !  Segundo a avaliação de Pierre Assouline, “A ausência que seremos tem todos os ingredientes para nos devastar de tristeza. Diante de nossos olhos, o romance se desenrola com carinho, afeto e ternura”.


Antonio A. Veloso.

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