domingo, 20 de novembro de 2011

Livros ("Liberdade")

Brasilia, 20 de novembro de 2011.


Com vivo interesse, acabei de ler o “Liberdade”, do Jonathan Franzen:  Editora Cia. das Letras, 2010/2011, 605 folhas.  O autor, nascido nos Estados Unidos, em 1959, ou seja, ora com 52 anos de idade, escreveu até agora quatro romances, sendo o mais famoso o “As Correções”, escrito há cerca de dez anos e que lhe proporcionou o prêmio National Book  Award de 2001. Tal como “As Correções”, a narrativa de “Liberdade” também se dá no meio-oeste americano, no contexto de uma família de classe média: naquele primeiro romance, as atribulações da família Lambert (Alfred e Enid, com os filhos Gary, Chip e Denise) e neste último a família Berglund (Patty e Walter, com os filhos Joey e Jessica).  O texto de “Liberdade” é ótimo. Trata-se de um atual, vibrante e abrangente  painel da vida americana, entre 1970 e 2010, descrevendo eventos cruciais na área política, durante o governo George W. Bush (entre 2001 e 2008) e o advento do sucessor Barack Obama, além de desenvolver importantes discussões sobre problemas do meio-ambiente e da superpopulação mundial, com implicações ambientais. A trama é muito bem estruturada, embora sobre temas comuns e quase triviais:  no relato, está por inteiro o famoso triângulo amoroso,  envolvendo o pacífico e bem comportado maridão Walter (“ o cara mais amável de Minnesota”), a irrequieta jogadora de basquete feminino Patty e o charmoso, cínico e mulherengo Richard Katz, músico talentoso da banda de rock Traumatics e,  mais adiante, do grupo country Walmut Surprise. È um trio interessante , intimamente ligado entre si e que convive desde a Universidade. Patty, o grande amor da vida de Walter, amigo especial de Katz, termina por se deixar seduzir pelo charme irresponsável do roqueiro, o que vai abalar as estruturas do relacionamento do casal, conduzindo mais adiante ao envolvimento de Walter e da bela Lalitha, indiana, sua jovem e competente auxiliar nas atividades profissionais na área ambiental.  Outro foco marcante da narrativa é todo o intrincado jogo de relacionamento entre os pais e os filhos Jessica e Joey, este desde cedo envolvido com a apaixonada vizinha Connie, com quem se casa prematuramente e à revelia dos dois. È muito cuidadosa a atenção que o autor dedica aos personagens coadjuvantes, mostrados com densidade e profundidade, em prosa forte e realista.  Richard Katz, a despeito da íntima amizade com Walter, aparece com grande força desestabilizadora da vida do casal.  Joey, declarado simpatizante do Partido Republicano, defensor da guerra contra o Iraque, contrasta arrogantemente com o pai, liberal, pacífico, ambientalista, que faz questão de ir de bicicleta para o trabalho .  O texto é desenvolvido com talento e competência, dissecando psicologicamente os personagens e aprofundando as suas reações,  com envolvimento inteiro do leitor.  Trata-se,  em resumo,  de painel alentado sobre a realidade americana, que justifica a estrondosa repercussão recebida no seu lançamento. È certo que pode ter havido exagero na reação do jornal inglêsThe Guardian quando, adicionalmente à designação de livro do ano,  nomeia o “Liberdade“ como o livro do século.  De qualquer forma, vale a pena penetrar no vasto e conflituoso mundo da família Berglund.  Boa e proveitosa empreitada para todos.  O abraço do

Antonio A. Veloso.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Livros "Deus está cansado"

Brasilia, 3 de novembro de 2011.

TEXTO:  “Deus está cansado”, de Everaldo Moreira Veras, Edições Sarev, Recife-PE, 2011, l43 páginas.
-   O autor, nascido em Parnaíba, PI, viveu muitos anos em Recife, Pe.. Engenheiro, psicólogo, contador de histórias, publicou cerca de 500 contos. Recebeu vários prêmios literários.

-   O texto, caprichado e criativo, é muito interessante:  caracterizado como romance,  não tem a forma de narrativa com os seus personagens e história próprios, roteiro e cronologia.  O texto é amplo e diversificado, desenvolve-se de forma sui-generis, singular.  Trata-se, na verdade. de um apurado mosaico de pensamentos, reflexões, fatos envolvendo um pouco de tudo, quase tudo:
-   fala da vida, de emoções, fala da sensibilidade humana, da compaixão, do “compromisso de jogar criaturas no mundo”, da falta de medo, do medo da morte, da descrença, dos recomeços (“me renovo a cada instante”), da antiesperança, das fraquezas, da despedida grosseira do emprego aos dezessete anos(“saí de mansinho, cabisbaixo, um cachorro amordaçado, rabo murcho entre as pernas”) ;
-   fala de muitas outras coisas, um mundo de coisas do nosso dia a dia, numa linguagem forte e criativa, às vezes agressiva, quase cínica e debochada;  fala frequentemente e abundantemente de Deus e faz queixas: “fez do homem que gerou um ser humilde, impuro, fraco, capaz de sofrer e pecar. Deu-lhe o livrre arbítrio,o direito de tomar o rumo sozinho, escolher o que lhe conviesse, é verdade. Mas será suficiente? O Criador pôde realizar o que há de mais belo: a vida.Contudo, deixou e deixa sua criação extinguir-se, sem piedade, sem compaixão, em curto prazo. Como se a morte não fosse o pior de todos os recursos, o fim”;
-   Deus ressurge seguidamente no curso dos eventos, é personagem central.  Às vezes, envolto em dúvidas e incertezas: “abro os braços, na rua proclamo o nome de Deus, o que não estabelece. Ainda assim, parece que acredito nele. Sim. Não. A dúvida permanece.”;
-   o protagonista fala das mentiras que conta: “conto inverdades sem parar, sou mentiroso no decorrer das horas. Vergonha não tenho, finjo, sou um farsante, mostro o que não confirmo;
-   fala amorosamente  dos poemas que escreve : os poemas que escrevo são ridículos, inexpressivos, desenxabidos, não apresentam o mínimo valor, mas eu os abençôo. São autênticos, reais, resignados, acredito neles, tanto quanto os inimigos.“
-   contundentemente, revela momentos de grande negação:”meu coração é infiel, sujo, ordinário, idiota, covarde.  Não acolhe ninguém – mentiroso, não pulsa, prefere o esconderijo fácil da insensatez, da imprudência, não está pronto para reagir. Uma vergonha. Não odeio, mas afirmo que não amo”;
-   e sempre volta a  Deus: “E descrevo o Deus Superior, todo-poderoso, senhor absoluto do Universo, que ampara, me enche de festa e alegria” ...”O Senhor me ouvirá, chamarei por ele; “ ...Mas confio em Deus, que me segurará (confiaria mais ainda se ele, Deus, existisse)”;
-   fala duramente do período de infância e juventude: “nasci e sempre ouvi a palavra “não me acostumei com ela. Passei as maiores privações na infância – me acostumei com isso.  Arrumei a primeira namorada, ela me deixou por causa de outro menino – me acostumei com a decepção.  Trabalhei duro na juventude, miserável – me acostumei com o dinheiro curto. Já adulto, amei muitas mulheres, feias e belas, todas me deixaram no momento difícil – me acostumei com a ingratidão. Estudei a vida inteira, sem parar, e  pouco aprendi – me acostumei  com a incapacidade. Tenho filhos por aí, que não me conecem – me acostumei com a indiferença do primeiro ao último.  Tive pai, e nunca fomos bons amigos – me acostumei com o não gostar dele. Tenho mãe, que me sufoca e me desgasta – me acostumei com o seu pessimismo. Perco sempre, coisas e pessoas – me acostumei com o não pensar em lucro. Escrevo livros, sofro com eles, dia  e noite – me acostumei a amá-los como a salvação. Não tenho alegria, disposição , sangue, nada – me acostumei a dizer que sou feliz.  Serei?
- e vem a persistência em falar de Deus, num Deus cansado: “Deus não atende, está exausto, recolheu-se para repousar, disse que não agüenta mais.  Que não pode,não deve, nem quer perdoar as pessoas, passar a mão pela cabeça dos pecadores.  Não sou burro de carga! – advertiu, rigoroso, aborrecido, enérgico, ignorante. Bufava de raiva, de ódio”;
- numa certa altura, desabafa:”quem quiser pai, que procure, investigue por aí, eu investiguei feito um cão danado. E não encontrei. Não tenho pai nem mãe, sou filho de um poste de concreto armado“; E acrescenta, sem meias-palavras: “E meu pai morreu, não fui bom filho. Teria meu pai morrido por causa disso? Não tenho pai porque eu o assassinei. Quando ele existia, não o compreendi, tampouco fui eu compreendido. Nunca nos abraçamos como amigos. Fui culpado? Não, por isso me esqueci dele, vivo ou morto. Agora, pai eu sou dos filhos que joguei no lixão, irresponsável”;
-   mais adiante, o relato vai assumindo a forma assemelhada de contos: a curiosa história, em Recife, do respeitado médico, doutor Cláudio Sabóia, profissional de alto nível, “cirurgião plástico de grande competência, várias vezes solicitado até por clínicas dos Estados Unidos para participar de cirurgias e estudos avançados”.
Era um cientista, um verdadeiro gênio. Paralelamente, freqüentador diário , nos finais de tarde, da sede do Sport Clube, era notável mestre no jogo de xadrez. Em Havana, Cuba, arrebatou o título de campeão sul-americano, derrubando figurões enxadristas. Surpreendentemente, todo esse sucesso esbarrou na figura inexpressiva do pouco conhecido Teobaldo, o Téo Cinzeiro  -  magro, alto, bigodinho ralo, jovem dezessete anos, no máximo“.  Uma tragédia ...  Há, também , a história do sonho esquisito com o Papa João Paulo II, até hoje aguardando resposta e explicações do Vaticano no sentido de desvendá-lo, bem como a vergonhosa experiência vivida por Geomilo como redator de importante empresa de comunicação,  além do episódio da descoberta da passagem secreta “lá no cinema da cidadezinha onde morávamos”  e, com destaque, a espetaculosa proesa do “tubarão faminto que passeava pelas águas rasas da praia” e que topou com “um  alvo preto, a mexer-se como se quisesse nadar – uma criatura viva, decerto pronta para ser devorada”. O objeto era um padre, com batina e tudo...  E havia também o caso do “homem pobre, miserável, que descobriu, certo dia, que possuía estranha capacidade, um dom extraordinário: quando  chorava, suas lágrimas se transformavam em pingos de brilhante”. Quanto mais chorava, mais rico ficava com a enxurrada de brilhantes;
-   ao final de tudo, o protagonista se apresenta, em relação à questão com |Deus, aparentemente pacificado: “fui um guerreiro,, busquei o bem com sangue e suor. Combati o bom combate. Minha vida foi digna, serena, correta, obediente, não renunciei a procura porque meus caminhos eram os da verdade. Eu os cumpri sozinho, por mim. Assim, me aproximei de Deus, ele existisse ou não, fui confiante na luta que escolhi sem medo, determinado.  Decerto a resposta será a salvação, o pedaço do céu que conquistei, o meu lugar. Guardo a fé.   

Brasília, 3/11/2011.