segunda-feira, 7 de abril de 2014

Livros "Um, dois e já" - Inés Bortagaray, Editora CosacNaify

Brasilia, 3 de abril de 2014.
Waldemir e Rogério,


 Acabei de ler um livro surpreendente (“Um, dois e já”,  de Inés Bortagaray,  Editora CosacNaify,  2010-2014,  93 páginas). 

 Trata-se de uma linda e delicada novela, “um livrinho e tanto”, possuído de extrema leveza. A autora, uruguaia,nascida em Salto em 1975, produziu um livro de contos em 2001 e é também roteirista de cinema. 

 A história de “Um, dois e já” é  extremamente simples e escrita em linha reta:  dentro de um carro apertado,  descreve a aventura da viagem de uma família  -  pai,  mãe e quatro filhos  - ,  na direção de um balneário localizado cerca de 800 quilômetros  da cidade de Salto.  A grande disputa entre os filhos era pela posição privilegiada na janela.  “Agora estou na janela.  Sorte a minha.  Não acontece toda hora, porque sou a irmã do meio ,e irmãs do meio nunca ficam nas janelas”.Como a viagem será longa, os pais decidiram sortear os lugares e fazer revezamento, de modo a evitar discussões e tumultos, o que seria perigoso na estrada.  A viagem é feita de pequenos episódios e “fiapos de observações”:  s a sucessão de poste, um em seguida ao outro (um, dois, três, vinte, trinta, cinqüenta postes), todos se movimentando  e a narradora quieta, observando  (“mesmo que meu pai parasse de dirigir, se ele se  negasse a acelerar, freasse de repente, esses postes e essas linhas seguiriam viagem”);  as lembranças e devaneios;  as disputas dos filhos e as intervenções dos pais;  a sensibilidade das impressões  da narradora, as suas piadas,  as suas ânsias de vômito, a procura da proteção com cheiro da colônia de sândalo;   as lembranças dos vizinhos e dos amigos (a família de Eva,  com a mãe argentina e o pai inglês).   O  pai insistia em recomendar aos filhos para aspirar, abrir os pulmões e deixar o ar da praia com iodo entrar (inspirem, inspirem). 

 È sugestiva a indicação que a filha do meio, a narradora, faz a propósito do perfil que ela  imagina para o seu futuro namorado:  “Eu quero um namorado de cabelo cacheado e que adore nadar no mar e que tenha lábios rachados por causa do sol.  Queria que ele tivesse ombros ossudos e uma clavícula transparente, quase à vista como a minha, que praticamente pudesse guardar sementes ....  E mãos grandes e misteriosas.  Se souber tocar violão, melhor ainda...  Se para me beijar ele segurar a minha cabeça com as mãos naquele lugar onde terminam a mandíbula, a bolinha da orelha e o pescoço,  que incrível.  Se gostar de missionários,  irmãos,  da palavra esporádico,  de vacas com olhar triste,cheiro de sândalo, números perfeitos,  Caninos brancos, da palavra crepúsculo, dos montes Apalaches,  dos confins, de vaga-lumes, feijoada, do outono, do vento sul, de arroz com espinafre e ovo frito, mechas de cabelo ruivo,  Tom Sawyer,  árvores idosas, cachorros dormindo, do som de pandeiro,  eu  caso”.   Mesmo sem mencionar explicitamente,  o pano de fundo está lá,  sutilmente, nas entrelinhas  -  o Uruguai da ditadura, nos anos 1980.    Enfim,  no ambiente apertado do carro,  nessa íntima e singular viagem,  fica o gosto das impressões deliciosas da filha narradora,  “nesse banco de couro bege, com esse cheiro de pijama no ar e migalhas de empanadas entre as pernas”.

A. A. Veloso



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